Feira ArPa
Habitar o indomesticável: o feminino como potência poética de reinvenção
O trabalho de Fernanda Feher é investido de uma potência feminina indomesticável e seu gesto como artista abriga ferocidade necessária para transmutar mundos. No centro de sua obra está a pintura, mas dela derivam outras linguagens – desenho, tapeçaria, papel de parede, cerâmica, porcelana e escultura – resultando em um pensamento poético que acolhe algo além do saber fálico e instituído, promovendo uma torção que encontra a insubmissão como força de reinvenção de si e do mundo. Do saber curandeiro ancestral de “Feitiço” ao singular “Jardim das deliciosas”, vislumbra-se uma dança imprevisivelmente fértil. O uso do mimetismo – um recurso de sobrevivência e disfarce como meio de fuga – é subvertido no jogo, com tons diversos de peles que passeiam entre frutas e flores. Os objetos estão sempre em explosão e deslocamento. Na justaposição e sobreposição de elementos, cores e texturas, a artista cria uma atmosfera hipnotizante e sedutora. Seu jardim é, antes de mais nada, um ensaio em torno das possibilidades transfiguradoras das margens, uma espécie de reencantamento do mundo pela força do feminino, uma forma de afirmar que a vida é insubmissa às estruturas e que, a despeito delas, insurge intempestiva e indomável. Sua produção diverge da lógica patriarcal da propriedade, da exploração e do controle da vida. Seu jardim é também o jardim de todas as mulheres. Frente aos imperativos postos, Fernanda Feher abre espaço para o surgimento da diferença no mundo com um hibridismo ímpar de humor e ferocidade, misturando Lilith, Jane Fonda, cartas de tarot, beringelas, garrafinhas de cerveja, espadas de São Jorge. É, no sentido mais agudo, uma iconografia delirante que, ao jogar e brincar com toda uma simbologia, sustenta a não-totalidade fálica que cria camadas de ambiguidade como, por exemplo, o uso da árvore “mata-pau” ou “figueira-vermelha”, uma planta estranguladora que pode germinar sobre outras até que suas próprias raízes alcancem o solo. Em “Todas as outras vênus”, várias texturas, espessuras e linguagens evocam outro lugar, outra possibilidade narrativa frente à história da arte canônica, uma abertura ao incalculável e inominável do feminino. Essa dimensão é invocada no livro “Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva”, de Silvia Federici. A filósofa sustenta a tese de que, no momento em que a terra começa a ser completamente privatizada, a mulher passa a ser igualmente controlada e, a partir daí, qualquer mulher que pratique alguma forma de insubmissão é demonizada e amaldiçoada. O que a artista propõe é outra espécie de feitiço: ao se apropriar desse significante maldito, ela o desloca à uma possibilidade que conjuga a sustentação da alteridade e de uma impropriedade própria da arte. Na sua obra, o feminino se apresenta como uma instância incolonizável que pode abalar a lógica, jogando, brincando e sonhando. Não por acaso, a importância que Sigmund Freud confere aos sonhos é justamente o fato de serem indóceis a qualquer síntese simbólica. No díptico “Natureza viva” a subversão se anuncia desde o título. Espessuras distintas e objetos que parecem saltar do quadro portam o tremor, espécie de brilho do real que perfaz uma figurabilidade particular, a partir de um ponto de abertura para o selvagem, para o que está ainda em vias de nascer, como na atmosfera dos sonhos que não contam uma história linear, mas fazem pulsar pelos fragmentos uma invenção, uma trilha que reinveste a existência e o cotidiano com qualidade indócil e poética. Neste sentido, o seu trabalho artístico quer reencantar o mundo e tomá-lo a partir de outra lógica, fazendo de toda a maldição uma purificação, uma espécie de expurgo que conjuga um saber feminino com uma força desterritorializante que abala as formas e as representações majoritárias. Se há, por exemplo, uma “Femme Fatale” em cena, é para estilhaçar as totalidades, como uma alegoria em que cabe o encontro com o excesso, sem que isso possa configurar uma violência contra o corpo feminino. E é tanto na dança fervorosa, quanto no silêncio que pode habitar uma delicada aquarela com uma bromélia, que essa fertilidade se erige. De tapeçarias – como um texto-textil feito por muitas mãos femininas em parceria com a artista – que ajudam a recriar o mundo, como do crochê que envolve o tríptico “Feitiço” e acentua um saber manual ancestral, passando pela mistura de técnicas de colagem, pintura, aquarela, desenho e tantas outras, Fernanda Feher cria sua própria desmedida, seu elogio à imprecisão e ao pensamento mágico que, frente ao desencantamento do mundo, pode criar frestas e fazer vicejar novas formas de existir, como na poesia de Adília Lopes: “O deserto está perto. Sempre. Mas o deserto é fértil”.
Texto de Bianca Coutinho Dias
NOTA
Os trabalhos “Lilith” e “Jane Fonda” foram feitos em parceria com o Atelier Adriana Fortunato (Adriana Fortunato, designer textil – Edu Garcia, produtor), criativo estúdio textil que, por meio de uma extensa pesquisa sobre a cadeia produtiva das fibras naturais e seus impactos ambientais, desenvolve tecidos e produtos com base em valores sustentáveis, culturais e produtivos.
Nesta parceria, os painéis mesclam impressão digital em uma base de algodão 100% reciclado com o trabalho manual de bordadeiras do Jardim Conceição, formando um jogo de volumes, texturas e manualidades com retalhos de seda pura, bordados diversos e feltragem de lã pura de pequenos produtores do sul do Brasil.